FRC | Uma década a pensar Macau | Revista Macau #87 de Julho 2022
Texto Marco Carvalho
Descomunal e austero, o aquário impõe-se com natural preponderância. As divindades orientais, as pinturas em papel de arroz, os requintes do mobiliário enchem o magro gabinete do advogado Rui Cunha com uma incontornável aura de exotismo, mas são as carpas – colossais e indiferentes, em incessável trânsito no imenso tanque – que sequestram o olhar. Desfilam com uma cadência uniforme, um vagar quase hipnótico que embala, que tranquiliza, que convida à introspecção.
E é de um exercício solitário de reflexão, de uma anamnese em jeito de balanço ao fim de pouco mais de uma década de Região Administrativa Especial de Macau, que germinaram, no Verão de 2011, os rudimentos do que viria a ser uma das mais influentes organizações da sociedade civil do território, a Fundação Rui Cunha. “Um ano antes de começar, de concretizar este projecto da Fundação, eu fiz um exercício de reflexão. Nessa altura, inclinava-me mais para a criação de um centro de estudos. Um centro de estudos, de reflexão e de difusão do direito de Macau. Essa ideia evoluiu um pouco e, em vez de um centro de estudos, convenci-me que era melhor criar uma Fundação que fosse o sustentáculo de um centro de estudos”, explica Rui Cunha, em entrevista à Revista Macau.
Se bem a engendrou, melhor a cumpriu. Radicado no território desde o início da década de 80 e sócio fundador de um dos maiores escritórios de advocacia de Macau, Rui José da Cunha talvez não acredite nos poetas, mas a intencionalidade com que o sonho se fez obra é quase pessoana. A 28 de Abril de 2012, menos de um ano depois de ter confidenciado aos seus peixes o desejo de retribuir a generosidade com que Macau o acolheu, o veterano causídico abriu as portas à Fundação Rui Cunha.
“Eu pensei na Fundação, essencialmente como uma forma de ajudar mais o estudo e a reflexão sobre o direito de Macau”, atesta o advogado. “Mas depois, e simultaneamente, resolvi criar um braço que tinha como missão tentar, também, ajudar a cultura aqui em Macau. Um braço de fomento à cultura, através de vários aspectos que nos propúnhamos considerar: teríamos a música, a arte e outras manifestações culturais – inclusive a edição de livros, a organização de seminários e de conferências sobre vários temas –, mas, essencialmente, o objectivo seria o de servir como um pólo de atracção da actividade cultural aqui em Macau”, complementa Rui Cunha.
Duas faces, a mesma moeda
Una e múltipla, a Fundação Rui Cunha é, em simultâneo, uma e muitas coisas. O direito, a cultura e a educação são a trindade de desígnios que catapultaram a organização, ao longo da última década, para um patamar ímpar no panorama social e cívico de Macau.
“Para se fazer algo que tivesse uma certa relevância na sociedade de Macau, era necessário fazer muitas coisas em pouco tempo”
RUI CUNHA
O propósito que norteou a criação da Fundação – o de promover a reflexão, o estudo e a divulgação do direito local – não é de todo a única faceta de que se ocupa a instituição, mas continua a afigurar-se, pela mão do Centro de Reflexão, Estudo e Difusão do Direito de Macau (CREDDM), como a sua principal razão de ser, face a uma exigência que se mantém premente. “Sinto que havia há dez anos [a necessidade de aprofundar o estudo do direito de Macau], há agora e há-de haver para o futuro. Porquê? Porque esta é uma área dinâmica que exige permanente actuação, permanente intervenção, permanente acompanhamento, até das alterações que a própria sociedade vai tendo. O direito tem que acompanhar tudo isso”, sustenta Rui Cunha.
“A sociedade hoje não é a sociedade de há dez anos e não é a sociedade de há 20 anos, da altura em que se fez a transição. Nós temos hoje uma sociedade diferente. As exigências são diferentes, os padrões de vida são diferentes e tudo isto necessita de ser transposto para o direito, que depois vem regular a vida dos cidadãos. E é nesse aspecto que eu penso que havia e há necessidade de se fazer mais”, acrescenta o mentor da Fundação.
Exigente e complexa, a árdua tarefa de acompanhar a par e passo a evolução de um corpo de saber em constante mutação levou Rui Cunha a recrutar reforços num dos bastiões da jurisprudência portuguesa. Mestre em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Filipa Guadalupe chegou a Macau um mês antes de a Fundação ser lançada para assumir a coordenação do CREDDM e, ao longo da última década, supervisionou o lançamento de dezenas de publicações, a organização de conferências, mesas-redondas e debates e viu a vocação do centro ser oficialmente reconhecida pelas autoridades de Macau.
“Ao longo destes dez anos, promovemos muitíssimos cursos. Cursos jurídicos, fundamentalmente, quer para estudantes de direito e recém-licenciados, quer também para profissionais em variadíssimos campos. Foram sempre cursos que tiveram boa aceitação”, salienta Filipa Guadalupe. “Foi uma área que sempre suscitou um bom feedback por parte da população, de tal forma que somos, desde 2019, um dos centros de formação certificados pelos Serviços de Educação e Desenvolvimento da Juventude para formação a nível jurídico. Não sei se existe algum centro privado para formação jurídica para além do nosso. Somos, pelo menos, um dos únicos e essa parte é bastante boa”, complementa a responsável.
No cerne da identidade da Fundação Rui Cunha, a salvaguarda e a divulgação do direito de Macau constituem, no entanto, apenas uma das dimensões do trabalho desenvolvido pela instituição. E até nem é a mais conhecida.
Uma casa aberta a todos
Ao longo dos 3669 dias que medeiam entre a criação da Fundação, a 28 de Abril de 2012, e 15 de Maio último, a Fundação Rui Cunha promoveu um total de 1385 eventos com formas, feitios e níveis de exigência muito distintos. Feitas as contas, as instalações da Fundação, na Avenida da Praia Grande, acolheram um recital, uma palestra, um debate ou a inauguração de uma exposição a cada 2,65 dias. Tal dinâmica – reconhece Rui Cunha – foi o resultado de uma estratégia deliberada que ajudou a transformar a instituição num nome incontornável do panorama cultural de Macau.
“Nós definimos desde o princípio que para se fazer algo que chamasse a atenção e que tivesse uma certa relevância na sociedade de Macau, era necessário fazer muitas coisas em pouco tempo. Não tínhamos tempo a perder e, se fizéssemos os eventos demasiado espaçados, teríamos problemas, até porque a forma como se vive em Macau faz com que acompanhemos um evento e, oito dias depois, já o tenhamos esquecido”, defende o advogado.
Os números são tanto mais admiráveis quanto o facto de serem fruto do labor e da dedicação de uma pequena, mas bem oleada máquina. Pelas mãos de Carlos Canhita e de uma mão cheia de outros colaboradores passou a organização logística da esmagadora maioria dos eventos organizados pela Fundação ao longo da última década. “São quatro pessoas na área operacional. A equipa é composta por um designer, por uma jornalista, por um elemento multimédia e pela pessoa que se desdobra quer na gestão da página da Fundação, quer na parte das publicações. Para além de tudo isto, nós ainda publicamos livros e outras publicações e esse trabalho também vem parar a esta área. É um bolo muito grande para uma equipa tão pequena”, sublinha Carlos Canhita.
Mas para o coordenador da Área Operacional e Comunicação Global da Fundação Rui Cunha, o “conceito triunfou”. “Havia um deserto em Macau que a Fundação Rui Cunha veio preencher. Isto foi um grande impulso para que jovens artistas e uma montanha de gente começasse a criar conteúdos novos, a ter novas ideias e a ajudar esta cidade a evoluir.”
Leave a Reply
You must be logged in to post a comment.