15 ANOS DA RAEM
Notícia na Entrevista do Jornal “Ponto Final” a Rui Cunha
19 de Dezembro 2014
“Poderia esperar-se um choque muito mais violento na sociedade”
O advogado radicado em Macau há 33 anos reconhece que o sector que representa é um dos últimos redutos da portugalidade no território 15 anos após a transferência de soberania. A passagem para a era da RAEM foi “suave”, diz, e surpreendente por não ter havido nenhum choque violento na sociedade que a viveu.
Sandra Lobo Pimentel
Já passou a meta das três décadas de Macau e, como diz, está quase a atingir tantos anos de RAEM como de administração portuguesa. Sobre os últimos 15 anos, Rui Cunha confessa a necessidade de se ter cuidado com as análises. Na sua opinião, esta “só poderá ser feita com consciência e segurança daqui a uns tempos”.
O advogado acredita que “a história analisada ainda a quente normalmente acaba por ficar afectada por sentimentos, emoções e, diria até, ventos de ocasião”, mostrando reserva em apontar o que se fez e o que se deveria ter feito.
Ainda assim, não se furta a concluir que “foi uma mudança com bastante sucesso”, e “suave” sem que as perspectivas negativas se tenham concretizado. “Poderia esperar-se um choque muito mais violento na sociedade” e, sublinha, “isso já é meritório”.
Não foi a 21 de Dezembro de 1999 que se notaram as mudanças. Nesse dia, mudou a bandeira, mas a vida continuou como era. Mesmo 15 anos volvidos, acredita que “só mais tarde é que poderemos ver a profundidade da mudança que foi a transferência”, isto porque “aparentemente, ainda estamos sob o efeito dessa mudança”.
Um dos traços que aponta prende-se com a mudança do centro de decisão, que afectou a dinâmica da vida em sociedade. “Saímos de uma situação em que o comando final estava a nove mil quilómetros de distância, para uma sociedade que passou a ter nas suas mãos o seu destino e a obrigação de zelar pelo bem-estar de toda a gente. Passou a ser a responsabilidade desta região e desta gente”.
No aspecto das leis, “os principais códigos e os pilares da legislação eram todos definidos em Lisboa”, o que “tinha um reflexo” muito próprio. “Aceitava-se e não havia necessidade de grande elaboração ou discussão porque vinha feito. Qualquer mudança tinha que ser reencaminhada. O comboio já vinha em marcha, digamos assim. Desse modo as pessoas não tinham que pensar, nem se expressar ou ir para as ruas”.
Depois da transferência, aos poucos, “deixou de haver o cordão umbilical e temos uma sociedade que ficou com a responsabilidade de se guiar a si mesma”.
Sobre o “fantasma” da República Popular da China e a possível influência que poderia ter no dia-a-dia da região, é partidário de que “ao longo destes 15 anos essa influência acabou por não ser tão forte que pudesse chocar com aquilo que havia antes”.
Administração afectada
Segundo se recorda, a primeira dúvida que se colocou a Macau era se estaria totalmente preparada para esta mudança e nova responsabilidade. “Em alguns sectores notou-se que não estávamos. E no sector da Justiça, efectivamente, isso veio a reflectir-se com a formação acelerada de juízes e no Ministério Público”.
No entanto, “a maior saída foi no sector da Administração Pública, que levou consigo juristas e pessoas que aplicavam e conheciam as leis. Foi aí que o edifício fraquejou. Tivemos um período em que todos os operadores de direito tinham dificuldades de comunicação com a Administração por não haver ainda pessoal capaz de suprir a falta dos que saíram”, relembra.
Verificada a saída dos juízes portugueses, reconhece que “teve algum impacto, mas recompôs-se muito bem”. Na sua opinião, “dentro daquilo que seria possível penso que se fez e conseguiu bastante e a justiça conseguiu manter-se, mais ou menos, equilibrada”.
Uma das marcas que logrou manter-se nestes 15 anos foi a matriz portuguesa da legislação e Rui Cunha entende que “há-de manter-se por muito tempo enquanto todos se esforçarem por ter um direito de características próprias”.
O Direito de Macau de raiz portuguesa “há-de sobreviver, mas para isso é necessário que haja esforço no sentido de ser pensado e usado em chinês”. Questionado se o uso da língua chinesa não é já, significativo, o advogado entende que “não é ainda o suficiente” e confessa que essa vertente esteve até na origem das suas preocupações na criação da Fundação Rui Cunha e do Centro de Reflexão, Estudo, e Difusão do Direito de Macau – CRED DM.
“Porque prevejo que se não houver cuidado na reflexão, muito estudo e difusão de um direito que seja especificamente de Macau, e que isso seja feito em língua chinesa, vamos ter muita dificuldade”. Se no espaço de dez a 20 anos esse trabalho não estiver a ser feito, “nessa altura a questão poderá passar por eliminar e absorver o Direito da China. Esse perigo existe”, alerta, até porque “o sistema jurídico chinês está-se a aperfeiçoar cada vez mais”.
O sinal de que o ordenamento jurídico local poder-se-á manter por muitos anos tem vindo, curiosamente, ou não, de Pequim. “A China já definiu, pela atitude que tem tomado com Macau, que pretende manter essa autonomia. Essa posição foi o que mais favoreceu a evolução em todos os sectores e ajudou muito à formação de toda a sociedade”.
Mas avisa que todos os operadores têm que fazer um esforço. “Se decidirem remeter-se à comodidade de se refugiarem nos seus gabinetes a fazerem os seus trabalhos para justificarem a remuneração no final do mês, então tenho dúvidas em relação ao Direito de Macau”.
O advogado dá exemplos como a falta de publicações, de livros para consulta, elaboração e discussão pública. E foi para dar esse tipo de contributo que criou o CRED DM, mas reconhece que a actividade ainda está aquém daquilo que gostaria.
“Ainda não sinto que os operadores de Direito tenham percebido o que está por detrás da nossa actividade. É preciso chamar à atenção que não existe doutrina nem jurisprudência”.
Necessário mais trabalho dos juristas locais
Por exemplo, Rui Cunha lamenta que as actividades que a Fundação e o Centro levam a cabo sejam mais participadas pela comunidade portuguesa, não só jurídica, já que, garante, “não hesitamos em investir na tradução simultânea para que os chineses venham e participem”. Até porque, defende, o Direito de Macau deve ser pensado pelos chineses locais e em chinês. “Se não houver este esforço não vamos a lado nenhum”.
Passados 15 anos, o sector da justiça, em especial o exercício da advocacia, tem-se mantido quase como um dos últimos redutos da portugalidade do território. A língua portuguesa domina o aspecto da doutrina, e o advogado não tem dúvidas de que “quem não domina o português minimamente tem muita dificuldade em ter sucesso no Direito”.
É por esse motivo que louva a iniciativa da Universidade de Macau em abrir um curso bilingue. “Há necessidade dos operadores terem capacidade nas duas línguas para que se possa evoluir em ambos os sentidos”.
A eterna questão do recrutamento de recursos humanos pelos escritórios locais não é alheia a Rui Cunha, que não hesita em afirmar que “a preparação dos juristas formados aqui e em Portugal é diferente”.
“Efectivamente, temos que reconhecer, por enquanto, que a formação feita em Portugal por faculdades com centenas de anos, com tradição e com um aparelho montado, torna mais fácil termos um jurista com melhor qualificação e com um sentido mais profundo da análise e da aplicação do Direito”.
No entanto, sublinha que não pretende “desmerecer a Faculdade [de Direito da Universidade de Macau], à qual presto homenagem pelo esforço que tem feito para formar juristas para Macau, mas é preciso sermos realistas: não têm ainda a qualidade e quantidade que possam acorrer às necessidades do sector”.
Por esse motivo, no escritório que dirige a opção é “pela qualidade”, e o advogado sublinha que se trata “apenas de uma continuação do que já se fazia”. Ainda assim, aposta no “aproveitamento de juristas locais”, isto porque, como é natural, “há necessidade de ter juristas que falam chinês para terem contacto com a população”.
“Actualmente, predomina o uso da língua chinesa nas sentenças e a população cresceu essa consciência de que é essa a sua língua”. Não vê isso como uma exigência pós-transferência ou um esforço de afirmação, mas sim com naturalidade e como “uma consequência natural das circunstâncias em que vivemos”.
Não deixa de ser mais uma consequência da transferência de soberania e, nesta altura, entende que “devemos seguir aquilo que a sociedade no seu todo exige”, e, fazendo parte da mesma, “necessitamos criar esse canal de comunicação”.
O modo de trabalhar não foi alterado, apesar destas mudanças. “Não mudámos. E os locais que se juntam a nós entram nessa linha e nesse modo de funcionar. Temos agora quase uma dúzia de estagiários, quase todos de origem local, e fazemos as mesmas exigências”.
Sobre o espaço que ainda existe para os advogados portugueses exercerem em Macau, Rui Cunha crê que “ainda há”, mas deixa uma observação relativamente ao protocolo que existiu com a Ordem dos Advogados portuguesa: “seria menos útil ao Direito de Macau ou à sociedade que viessem muitos juristas de fora”. E não só de Portugal, mas também das ex-colónias com sistemas jurídicos semelhantes. “Não é salutar”.
A qualidade de quem vem tem o seu peso ,e neste particular, o advogado aponta o dedo aos formados localmente que, “se fizessem um esforço mais sério para serem melhores, não haveria nenhum perigo ou problema de virem mais juristas”.
A “passividade” que identifica, diz, é proveniente do bem-estar em que Macau passou a viver. “É fácil ganhar dinheiro, uma pessoa acomoda-se. Para quê estudar mais, aperfeiçoar? Acaba-se o curso, abre-se um escritório e ganha-se o suficiente”, lamenta.
Mais uma vez, o trabalho da Fundação com o seu nome é a prova dessa inércia. “Conto pelos dedos das mãos as pessoas que procuraram a Fundação no sentido de publicar trabalho e promover a difusão”, lamenta.
Outra das dificuldades pode estar no sistema de ensino local, mais baseado numa lógica de memorização do que de compreensão. “Em Direito não chega saber o código ou as leis. É preciso usar o raciocínio para aplicar o dispositivo legal aos casos práticos”.
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